sábado, 7 de novembro de 2009

MIGALHAS



Sentia-se diferente dos outros, como se tivesse sido forjado de uma matéria diferente dos outros humanos, como se nele pulsasse um espírito não tão comum nessa selva de tantos cegos. Era tão inexato que qualquer tentativa de explicá-lo acabava no devaneio, em rascunhos que pouco sugeriam; mas bem no seu íntimo habitava uma essência comum. Ali ele se refugiava, ali ele alimentava os desejos que poderiam completá-lo, os argumentos que finalmente pudessem explicá-lo diante dos outros.
O que esperava do mundo? Esperava tantas coisas... Que Deus se compadecesse de seus sonhos e enchesse seus caminhos de primaveras, mesmo quando os tempos chorassem tempestades de desolação.
Naquele dia, sentia que a solidão estava embaçando a transparência de sua luz. Não tinha reparado muito bem, mas agora descobria que fome era aquela, que sede era aquela, que inquietação era aquela que lhe pertubava o íntimo.
Resolveu sair sozinho, procurar um bar e exercer sua filosofia de boêmio, ouvindo sua história ser cantada na voz de quem também amou demais. Amou demais? Ás vezes ele tinha dúvida se amara demais... Queria que sua esperança tivesse razão e provasse que aquilo não fora amor. Amor desacredita a gente? “Só mais uma dose...” Sentiu falta de uma quentura, de uma cumplicidade, de uma palavra que pudesse servir de parâmetro para suas escolhas, que pudesse dizer que o seu velho jeans precisava ser aposentado... Saudade de um perfume, saudade de toda uma existência que ele cismava em acreditar que não se construiria como imaginava...
Do outro lado do bar, uma moça o observava. Parecia sozinha. Sozinha como ele, de lábios sem dono, de alma livre, calores solitários...  Ele se aproximou, fez um comentário qualquer sobre a música que tocava, ofereceu uma bebida. 
Não agiriam como estranhos naquela noite. Teriam piedade de si mesmos, criariam uma atmosfera de intimidade que lhes permitisse montar a cumplicidade que tanto desejavam. Dividiriam suas químicas, enganariam seus próprios corações com mais um amor descartável, com aquela felicidade que se rasga assim como a cigarra, de uma vez só.
Haveria um nome para relembrar? Ainda tinham esperanças de que as migalhas um dia se transformassem em banquete; sonhavam que alguém cantasse o final de suas histórias de uma maneira mais feliz. 
Dormiriam abraçados, como se se conhecessem de outras vidas.


Hérlon Fernandes Gomes




4 comentários:

  1. Adorei o conto. Esses encontros casuais podem sim terminar em um final mais feliz, mais permanente.
    Abraços.

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  2. esse conto é a cara do mundo pós-moderno em que estamos inseridos.a possibilidade do amor fica submissa ao momento, aquilo que é descartável.como ando na ordem contrária das coisa quero um amor, estar feliz, migalhas não.
    porém, quero acreditar que num bar, numa noite ou dia de desesperança possa haver a possibilidade de um AMOR.

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  3. Verdade, Fatinha! Que a trila da nossa vida seja sempre feliz, cheia de plenitude, amiga! Abraços.

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  4. Só agora consegui chegar para me alimentar de "migalhas".
    Este conto nos faz visualizar os personagens, tanto que quase ousamos torcer, ou quem sabe, dizer que um banquete não se faz de migalhas, mas o contrário. Há uns dias, escrevi sobre 'migalhas de um casamento', porque o amor é mesmo contagiante. Desconfio que a química de que os casais precisam e buscam associa-se muito mais ao caminho que fica entre o coração, os ouvidos, os ombros... Ah, as mãos também são essenciais para se andar com elas dadas.
    Muito legal teu conto, Hèrlon. Lúmen merece este.
    Fique com Deus.
    Abraço.
    Magna

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