sábado, 19 de março de 2011

"O CABARÉ DE VIDRO" de Sérgio Darwich

       
         Quando cheguei ao Norte do país, há quase um ano, mais especificamente à pacata cidade de Guajará-Mirim – Rondônia, imbuí-me de interar-me acerca da cultura desta terra, notadamente sobre as áreas que me apetecem.
         Tive a sorte de poder comungar, no meu ambiente de trabalho, de mentes brilhantes, das mais cultas e agradáveis. Eis que, na faina cotidiana, nos intervalos entre uma audiência e outra, discutíamos sobre música, literatura, cinema, política...  lanço, ali, na prosa, a minha curiosidade sobre conhecer a obra O Cabaré de Vidro, escrito pelo falecido pai de um dos interlocutores. Um pouco surpreso com minha investida naquele momento, dias depois, o referenciado, Bruno Sérgio de Menezes Darwich, surpreende-me com um exemplar dedicado daquela obra, com os seguintes dizeres do imortal Cervantes, que bem poderia ter epigrafado o livro no original: “Se o poeta fosse casto em seus costumes, seus versos também o seriam. A pena é a língua da alma: como forem os conceitos que nela se conceberem, assim serão seus escritos”. (Dom Quixote, Parte Segunda, Cap. XVI)
         Começo por dizer que li o livro de uma sentada e passei o dia inteiro tomado pelas sensações que ele me despertou.
         Sérgio Darwich é um nome estranho na fama das letras nacionais, como tantos talentosos poetas o são. Não obstante sua impopularidade, os poemas deste autor tiveram a força elevada de me marcarem como o fizeram Drummond, Cecília Meirelles, Neruda, Florbela Espanca, Murilo Mendes e tantos outros imortais conhecidos de todos nós.
         Se a valorização da cultura anda capenga em todo o País, aqui em Rondônia, esta jovem unidade da federação, não é diferente: agora que ocorre um processo inicial de despertar da arte aqui produzida. Depois de ler a obra, senti-me instado a prestar uma homenagem ao poeta e dividir com os leitores do meu blog da pungente mágica poética ali presente.
         Publicado no ano 2000, O Cabaré de Vidro é uma coletânea de poemas escritos entre épocas variadas da vida de Sérgio Leonardo Darwich. Nascido em 1947, em Belém-PA, o poeta, de ascendência libanesa, radicou-se no Estado de Rondônia, onde desenvolveu fecunda carreira de advogado. Falecido em 2005, além de ter escrito a coletânea “Poemas Vagabundos”, em parceria com Sérgio Mendonça e Ivana Aguiar, o escritor triunfa o legado maduro de sua escrita no singular O Cabaré de Vidro.
         Como se infere pelo título, o autor explora a zona mais recôndita do íntimo que, no entanto, expõe sem nenhum pudor, instigando mistérios, já que sua unidade de medida é o sem-limite do sentir, é o despudor de estar vivo e constatar que não guardamos segredos de nós mesmos.


“A VIDA,
ESSA IDEIA FIXA,
ESSE TUDO OU NADA,
ESSE AGOZ DA MORTE
APRISIONADA”
(pág. 16)

“Minha boca
Suga exasperadamente
Os seios da solidão.
Minhas mãos,
Lúbricas,
Tateiam o sexo da noite.
- Os gonzos da angústia
Rangem no silêncio.
O pássaro do desespero
Pousa muitas vezes,
Na urgência do teto
Que me abriga a cada instante.”
(pág. 28)


         O livro é um palco onde se perfilam as emoções mais vivas, regadas a sangue, suor, sêmen, saliva e lágrima. O espectador perceberá que existe uma porção de ser-humano guardada intacta no decorrer das gerações, porque os sentimentos da carne e da alma conservam uma alquimia secreta que nos será peculiar ad eternum.


“Sou um homem sem data,
Sou todo ausência.
Tudo em mim
É notícia antiga,
Manifesto inacabado,
Ato de ser até quando.
Não tenho propostas,
Minha vida ruma sem rumo.
Sou um homem sem data.
- Na estrada dos dias
O tempo corre mais veloz.
Sou um navio quebrado no estaleiro da dúvida.”
(pág. 24)

“Fatigado de mim,
Certas horas,
Me fujo,
Me perco,
Me escondo
Num lugar qualquer
Da minha ausência.
Em seguida
Me desespero.
Me procuro pelos
Atalhos da memória,
Até me achar.
Então me mato
E me dispo
E durmo sossegado.”
(pág. 44)

“Cruzávamos o portal da noite
Ao encontro do amanhecer
Montando cavalos de sono.
Chegávamos rápidos
E desmontávamos
Com nossos gestos breves.
Despíamo-nos lentamente
Sobre a relva da manhã.
Em seguida,
Tocávamos e beijávamos
Nossos corpos nus,
Como convém aos amantes,
Despidos de passados e pudores.
Tudo se passava
Num ritual discreto e descontraído.
Gozávamos profundamente,
Tanto tempo,
Tantas vezes,
Até que adormecíamos sobre a relva.
O sol anunciava sua partida.
Então,
Despertos,
Montávamos cavalos de sono,
Cruzávamos o portal da noite
E voltávamos outras vezes
Para acordar o dia.
(pág. 50)


         As metáforas surrealistas de Darwich tocam compassadamente a essência de uma sinfonia concertada com a alma.


“A mulher de passos tristes
E gestos indefinidos,
Segue o rumo de seus olhos claros.

Na curva de seus passos
Há uma porta de inconstância
E sonho.
- Moderna arquitetura do passado.

No rumo de seus caminhos,
O tempo é uma viúva disfarçada
De prudências e escombros.

No mundo luminoso do seu ser,
Repousam antigas mãos de pássaros
E atitudes incompletas.”
(pág. 54)

“Sol me fustiga
O rosto
Pela fresta da manhã.
Enérgico,
Me desperta,
Me traz a memória na bandeja.
Sonolento,
Fastidioso,
Me levanto,
Me comprovo,
Me providencio.
De pronto,
Mais uma vez estou pronto:
Distinto,
Discreto,
Preparado.
Enfim,
Rigorosamente trajado
Com a farsa que eu sou,
Apto a sair,
Por aí,
Impunemente.”
(pág. 42)

         É, sem dúvida, um livro corajoso, em que o poeta se enfrenta nu, diante do espelho e questiona a emoção indefinível de viver; expõe a irreprimível necessidade de quedar-se aos desejos levianos do coração; entrega-se à preguiça morna da luxúria necessária.


“Onde anda o amor recomeçado
Na dádiva do sonho a cada vez?
Onde anda o amor inacabado
Na consistência da morte toda vez?
Minhas mãos cheias de pânico
Soluçam por carícias provisórias.
Bendita seja a paixão desesperada,
Limite preciso entre a vida e a morte.
Oh amor profano!
Um manto de inocência
Se estenderá sobre teu corpo.
A mim me resta um desprezo espontâneo.
Meus lábios incendeiam em beijos solitários.
Meus versos dão notícia do teu fim.”
(pág. 58)


“Uma nuvem de silêncio espessa
Envolve delicadamente a noite.


No Cabaré de Vidro,
Dançarinas de cristal se despem
Em ritmo musical lancinante.


Refletidas nos espelhos
Imagens em cores imaginadas
Traduzem profecias passageiras.


Discretamente,
Um jovem casal ardente
Roga por carícias esquecidas.


Uma prostituta sensual
Ergue um brinde para todos
Em pleno salão central.


Entre os presentes,
Futuros vestígios,
Derradeiros presságios.


No mar em frente,
Marinheiros de fumaça
Se dispersam em navios perdidos.


No rio atrás,
Uma profunda cicatriz
No rosto das águas.”
(pág. 66)


         Entre um trago de uísque e um charuto, ele debate as mazelas sociais, põe o dedo na ferida da ignomínia humana para, ao final, fatigado de si, debruçar-se sobre o rio, onde seu reflexo é um álbum de emoções escolhidas que ensinam o poeta a enganar a morte.


“Cumpra-se a lei
A mando do rei.

Ele falou,
Não devia falar:
É crime de pensamento,
Não há como negar.

A lei permite o pensamento,
Que ela não deixa expressar,
Já era quase possível,
Pensar sem poder falar.

Ele falou...
Cumpra-se a lei,
Chicote do rei.”
(pág. 10)

“Desponta
Essa manhã em cinzas,
Apontando ruínas recortadas.
Descuidadas,
Deusas de cristal e vidro,
Discutem em silêncio
Seus mistérios mais profundos.
O rio,
Contudo,
Indica as mesmas coisas:
Água, morte, substância.
A ribanceira tece seus segredos
Em fibras de amor desperdiçado.
É música volátil,
É pássaro sem pouso,
O rio.
Dentro do barco,
O tédio vaga seus acordes.
O sonho é brisa passageira.
O rio segue o trajeto de seu talhe,
O rio não tem malícia de seus males.
Tudo se confunde.
- Sombras de coisas e acontecimentos.
E o canto existe, mas repousa,
Numa canção que em barro se dispersa.”
(pág. 68)

“NINGUÉM PERCEBE
QUE MORTO
VOU DESLIZANDO
PARA NASCER
DAQUI A POUCO
NA OUTRA MARGEM DO RIO”
(pág. 69)

         Sem dúvida, a leitura de O Cabaré de Vidro não pode se resumir ao seleto grupo que teve acesso a primeira e única edição da obra. Esta antologia crítica, além de servir de homenagem ao poeta Sérgio Leonardo Darwich, e de partilhar com outros leitores de alguns dos poemas ali escritos, é um protesto para que se valorizem mais a cultura e a literatura no estado de Rondônia.
         Oxalá o progresso cultural deste lugar acompanhe o desenfreado crescimento industrial!


Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim – Rondônia, 13 de março de 2011.


P.S.: Dedico esta postagem, em especial, ao filho do poeta homenageado, Bruno Sérgio de Menezes Darwich, uma das mentes mais cultas que já conheci e um ser humano admirável, notadamente por sua competência e humildade.



7 comentários:

  1. Gostei muito, Hérlon.
    É uma poesia muito intimista, reflexiva.
    Pelo visto você continua sempre engajado com a cultura.
    Que o Norte te receba bem!
    Abraços.

    ResponderExcluir
  2. Estava com saudade de postagens novas suas.
    Adorei o que li sobre O Cabaré de Vidro. Poesia muito rica, amigo! E sua crítica é tão cheia de alma quanto o que li.
    O Cariri sente sua falta. Que o Norte desfrute de sua paixão pela cultura, especialmente pela literatura.
    Nunca deixe de escrever.

    ResponderExcluir
  3. Hérlon nos deixa por um tempo degustando silêncios e volta com esta prova de vida e ressurgimento com outro poeta, desconhecido de nós, mas bem conhecido de sua gente, de seu filho, que percebeu que o livro do pai poderia pousar em determinadas mãos. Acertou em cheio, Bruno.
    Parabéns pelo seu pai. Eu, que também me despedi do meu há muito, fiquei com as palavras ditas e outras só pensadas. Você tem, além das lembranças, um (dois?)livro inteiro para degustar sabedoria, esperança, beleza. Eis a alma do poeta na parte visível para nós. Para Deus, certamente,tem mais, afinal, foi Ele que estava na "outra margem do rio".
    Que Rondônia possa mesmo enxergar seus cidadãos com maestria.
    Valeu demais, amigo Hérlon. A ascendência libanesa de Sérgio Darwich lembrou-me outro poeta, este sim libanês: Gibran Kahlil Gibran que tanta sabedoria e beleza destilou. Acho que a alma deste povo deve ter algo de profundo ou vai ver que é a poesia que faz isto com as pessoas. Sérgio deve ter "sofrido" deste "mal".
    Abração!
    Magna

    ResponderExcluir
  4. Oi Hérlon... gostei do seu blog... gostaria de convidá-lo a visitar o meu e participar de uma coletânea de contos e crônicas que estou organizando.

    Informações nos blogs:

    www.antonioluceni.blogspot.com
    e
    www.blogdaube.blogspot.com

    Fico aguardando contato seu

    Antonio Luceni

    ResponderExcluir
  5. Hérlon, seu texto é tão verdadeiro. Homenagem bonita essa leitura cuidadosa que se desdobra num escrito também cuidadoso, capaz de bem apresentar o autor e suas imagens. Confesso que pelo título já me sinto instigada ao conhecimento de Sérgio Darwich, e sabendo-o por suas palavras que remetem a um leitor tomado de fascínio e embevecimento, a curiosidade pulsa, aumenta. A vida é mesmo um estado de despudor, parabéns por essa imagem... toca com ela uma beleza torta, escondida do real. Queria poder falar mais, estou em JP sem acesso contínuo ao mundo virtual... Mas, algo que não posso esquecer: sua escrita é clara, sem com isso deixar de lado o poético... acho que além de poeta, vc é sem dúvida um excelente cronista. Beijos e saudades.

    ResponderExcluir
  6. Herlon, muito obrigada pelas palavras e elogios feitos tanto ao meu tio Sergio quanto ao meu primo Bruno. A mais de 16 anos morando fora do Brasil nada me orgulha mais do que ser Darwich e nao tenho palavras para dizer o quanto eu admiro o Bruno e admirava meu tio. Duas mentes brilhantes, muito alem do que possa vir a um dia entender. Meu tio deixou muitas saudades mais tambem deixou um pouquinho de si no Bruno e com isso eu acredito que se ele desejasse, conquistaria o mundo

    ResponderExcluir
  7. Fico muito triste em saber de sua morte e ao mesmo tempo sinto orgulho em dizer que por uns bins anos de minha juventude fiz parte do convivio de sua família. Sinto muitas saudades de todos, principalmente dele, que eu considerava um pai, de seu filho Bruno e sua filha Tiana que sempre tive como se fossem meus irmãos. Saudades eternas a esse homem digno, de grande valor para todos que o conheciam!!!

    ResponderExcluir