sábado, 26 de março de 2011

O outro lado do espelho


Era um ritual secreto que se iniciara na infância, quando contava dez, onze, doze anos de idade, talvez. Trancava-se no banheiro, subia e sentava-se na pia para mirar-se no espelho. Não sabia bem o motivo de fazê-lo escondida dos outros; certamente porque não teria uma desculpa para quem a surpreendesse diante daquele ritual inusitado.

Quando se observava, não procurava enxergar simplesmente o superficial. Era uma atitude para se reconhecer. Afirmava em som audível para si: “Eu sou eu. Meu nome é Alice.” Invadia-se por uma sensação indescritível de existir, de participar da vida. As respostas vinham como ondas de arrepios elétricos pelo seu corpo. “E por que ela nascera? E por que ali, filha daquelas pessoas, irmã dos seus irmãos?”, “Por que sua vida era assim?” Na maioria das vezes era retirada do transe por alguém que precisava usar o único banheiro da casa.

Quando estava sozinha, era bem melhor; podia continuar seu ritual no espelho do quarto dos pais. Era enorme, com grossa e antiquada moldura em madeira. Ali, além de se questionar, desafiava o próprio reflexo, não muito convencida de que a imagem refletida correspondia à realidade. Fugia da imagem central, depois voltava de vez para certificar-se de que se tudo acontecia tal qual ela gesticulava.

O tempo foi passando, e no fundo do espelho, sabia que podia contar com uma amiga secreta, nem sempre com a razão absoluta para todas as coisas, mas bem mais cheia de vigor e autoconfiança que a Alice do lado de fora.

Quando a tristeza era desoladora, e desembocava num rio de lágrimas, corria para frente do espelho e passava a escutar os conselhos que a outra lhe ditava. Geralmente aquela lhe ria da fraqueza, xingava o seu melodrama, seu medo de encarar as pessoas e as emoções que o mundo exigia que ela desfrutasse. De outras vezes, obrigava-a a esbofetear o rosto, como sinal de punição para sua fraqueza e covardia. Resolvia? Resolvia, sim. Só conseguia adormecer quando prontamente disciplinada pelo outro eu que habitava o vazio-cheio do espelho.

Quando se apaixonou por Beto, passou a viver um drama inconciliável com a Alice “de dentro”. Esta acusava-a de submissão cega, de falta de amor-próprio, de imbecilidade; tachava-a de ridícula até que, humilhada, resolveu esquecer o ritual. Era simples: bastava não se questionar diante do espelho, senão a outra, a intrometida, procurava instituir um império de razões e desaforos.

Eis que veio o fim do namoro. Beto estava cansado, não queria mais se sentir preso a ela, também era melhor ela não querer saber os porquês, acabaria se magoando ainda mais...

 Voltou para casa sem alma. No quarto, acendeu a luz. Diante do espelho, teve dez segundos para sentir pena de si mesma, até que a outra reapareceu, também com os contornos sérios, como se jogasse no âmago os argumentos que comprovassem a falibilidade da Alice “de fora”: “Você precisa morrer!” 
 
Ajoelhada, convencida de que a outra tinha razão, chorava como uma condenada a expiar uma pena que não merecia. Chegou mais perto do espelho e ali, tocando a superfície gelada do vidro, sentiu-se transportada para o interior daquele espaço, onde tudo era inquietantemente surdo. Sentiu uma inédita aflição, enquanto a outra, antes “de dentro”,  ameaçava-a com um sorriso de vingança. 

Agora livre, dirigiu-se até a janela do "seu" apartamento. Que sede de liberdade! Respirou fundo. Constatou que do quinto andar até o solo era uma altura considerável. Retornou ao espelho. Retirou-o com pressa da parede e volveu ao vento frio da madrugada. Como percebesse não haver transeuntes àquela hora da noite, lançou-o com vigor até o centro do asfalto. Lá embaixo, espatifada em cacos, jazia uma Alice que nem merecia ser lembrança.

Hérlon Fernandes Gomes
21 de março de 2011
Guajará-Mirim-RO

5 comentários:

  1. Teu conto me trouxe diferentes sentimentos e uma interrogação: quantos de nós precisaria, de vez em quando, conversar com o próprio reflexo? Quem sabe no final, se não faríamos as pazes ou mataríamos a parte obscura que teima em existir.
    Por último, tomo a liberdade de deixar esta parábola de Gibran(como vês, tenho lembrado dele). Não sou profunda conhecedora do poeta(aliás, de nada), porém é a que mais gosto.
    Abraços.
    Fique com Deus!
    Magna

    O EU MAIOR (Gibran)

    Isto veio a acontecer. Após a sua coroação, Nufsibaal, Rei de Biblos, se recolheu ao seu quarto de dormir - o próprio quarto que os três eremitas-mágicos da montanha tinham construído para ele. Tirou a coroa e os trajes reais, e ficou de pé no meio do quarto pensando em si mesmo, agora o todo-poderoso governante de Biblos.
    Subitamente voltou-se; e viu um homem nu sair do espelho de prata que sua mãe lhe dera.
    O Rei ficou assombrado, e gritou para o homem: "Que queres?"
    E o homem nu respondeu: "Nada senão uma resposta: Por que te coroaram Rei?"
    E o Rei respondeu: "Porque sou o homem mais nobre do reino."
    Então, o homem nu disse: "Se fosses ainda mais nobre, não poderias ser Rei."
    E o Rei disse: "Porque sou o homem mais poderoso, coroaram-me Rei."
    E o homem nu disse: "Se fosses ainda mais poderoso, não poderias ser Rei."
    Então o Rei disse: "Porque sou o homem mais sábio, coroaram-me Rei."
    E o homem nu disse: "Se fosses ainda mais sábio, não escolherias ser Rei."
    Então, o Rei caiu no chão e chorou amargamente.
    O homem nu baixou a vista para ele. Depois, tomou a coroa e, com ternura, recolocou-a na fronte curvada do Rei.
    E o homem nu, olhando amorosamente para o Rei, reentrou no espelho.
    E o Rei se levantou, e olhou para a espelho. E só se viu a si próprio, coroado.

    fonte: O Precursor (Gibran Kahlil Gibran)

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  2. Obrigado pelo post, Magna! Você sempre com argumentos mais que pertinentes.
    Era o reflexo do que eu precisava!
    Gibran é realmente um grande mestre. Preciso ler mais dele!

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  3. Maravilha de conto. E eu vou aproveitando para conhecer melhor teu blog. Com certeza, mais uma fonte de boa literatura. Feliz tudo!!!

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  4. Este conto da Alice, me trouxe a reflexão sobre o quanto nós nos julgamos pelos nossos atos!E como nos olhos com os olhos dos outros,com o julgamneto do outro. Fico a pensar, e refletir... será que algum dia poderei viver sem me ver perante aos olhos dos outros???
    Será que algum dia poderei ser eu mesma??? Matando este ser que sente medo do mundo...e medo do que sinto??

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