segunda-feira, 20 de junho de 2011

MISTÉRIO DE UMA NOITE DE SÃO JOÃO



Foi o São João de 1992. A casa estava cheia. Todos os filhos, todos os netos. No terreiro, homens se empenhavam em aumentar ainda mais a pirâmide que seria a fogueira de logo à noite. Na cozinha, fervilhavam caldeirões com pamonhas; titia Alice batia ovos para bolo de pão-de-ló; a empregada Maria embriagava-se escondida nos preparos do quentão e do leite-de-onça; nós, as crianças, contávamos o arsenal de bombas, traques e chuvinhas que explodiríamos mais tarde; vovó, filhas e netas cortavam papel de seda para a confecção de correntes e bandeirolas que adornariam o terreiro; a velha vitrola animava o ambiente com forrós de Luiz Gonzaga...

À noite, apontou a orquestra de zambumbas, sanfonas e triângulos. Fogos estouravam no ar. A fogueira começava a arder. Uma quadrilha improvisada formou-se.

Para mim, o São João sempre foi uma das melhores festas do ano. É o carnaval sertanejo. Mas, a parte que eu mais gostava era um momento cheio de mistério que só os corajosos topavam. Não se tratava de explodir a maior bomba, não se tratava em pular a fogueira no auge de suas chamas... Tudo isso tinha lá a sua diversão, porém o que mais me chamava à atenção era o momento da bacia branca.

Acho que esse oráculo não é um feitio apenas do Cariri, o fato é que no sítio dos meus avós, sempre foi uma tradição. Consistia no seguinte: quando a fogueira estava com as chamas já vacilantes, o suficiente para se conseguir aproximar dos torrões de brasas, enchia-se uma bacia branca virgem com água e posicionava-a o mais próximo possível do fogo brando. O ritual consiste em ajoelhar-se perante a bacia e enxergar o próprio rosto. Reza a lenda que quem consegue realizar a façanha, enxerga, na verdade a face da própria alma no futuro e, portanto, estará vivo no ano seguinte para contemplar mais uma festa de São João.

Superstições à parte, muitos não tinham coragem de participar do oráculo. O velho Otílio, por exemplo, naquele ano já contava com mais de oitenta e cinco anos e resolveu não querer saber mais se ano que vem estaria vivo ou não, preferia a ignorância. Meu pai foi o primeiro a encarar o desafio e ,dentre em poucos segundos, levantou-se anunciando que se viu claramente. Minha mãe repetiu a façanha, seguida de todos os filhos. Vovó Hozana, sempre muito supersticiosa, dispensou o desafio, preferia não saber. Tinha medo de ficar "impressionada". Vovó perdeu o pai em tenra idade, vítima de um infarto fulminante quando aquele contava apenas trinta anos de idade, deixando viúva a mãe com cinco crianças pequenas. Ao pé da fogueira ela contava aos netos que viu o pai angustiado por não ter conseguido enxergar o próprio rosto um ano antes. Ele morrera no mês de maio do ano seguinte, um mês antes do São João, cumprindo o prognóstico do oráculo... O relato de vovó despertava histórias parecidas de gente que se juntava para contar também seus dramas íntimos. Até que, percebemos que faltou vovô se olhar na bacia. Meu pai incitou-lhe: “Oxente, Seu Zé, tá com medo da Morte?”.

O velho Zé Milagres era um leão forte, de inspiradora segurança e não gostava de ser desafiado: “Pra quem já viveu oitenta anos, o que é um ano a mais ou a menos?” Ajoelhou-se, franziu o cenho, virava a cabeça para um lado, para o outro, cobria a testa em busca de uma sombra ante as brasas para que facilitasse o reflexo... Debalde. Levantou-se, sacudiu a poeira dos joelhos e anunciou, firmemente, sem emoção alguma: “Não me vi.”

Houve um silêncio de poucos segundos, até que minha mãe partiu em seu socorro, a desacreditar o oráculo: “Papai, que besteira! O senhor não enxergou porque exagerou na bebida!”

Embora em pouco tempo a preocupação tivesse se dissipado diante de todos, afinal, a sanfona animava o terreiro, não deixei de perceber que vovô sondava o próprio íntimo durante toda a noite.

Acordei-me durante a madrugada. Fazia um frio imenso, de bater os dentes. Só se escutava o coaxar de sapos e o cri-cri dos grilos. Levantei-me agasalhado com uma manta. Percebi que a porta da frente estava aberta. Rumei até a entrada da casa. De lá, vi vovô ao pé dos restos de fogueira, remexendo com um pedaço de pau os tições anêmicos. Cheguei perto: “O senhor está acordado sozinho até essa hora?” Ele pediu-me que me concentrasse na música que o vento fazia quando tocava umas palmeiras de que ele muito gostava. Mostrou-me a Estrela d´Alva no céu, piscando como um diamante multicolorido. Disse-me que a vida é muito boa, só não se pode é perder a esperança.

Ficamos nós dois, velando a madrugada, aproveitando o calor da fogueira que ia se esfacelando aos poucos, espalhando-se em cinza pelo vento frio que vinha do Sul. Os galos despertavam o sol de mansinho...

Fiquei com essa frase de vovô até hoje na memória: “A vida é muito boa, só não se pode é perder a esperança.”

Vovô faleceu em 18 de Junho do ano seguinte, dias antes da noite de São João.

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia, 18 de Junho de 2011.

P.S.: Para vovô Milagres, que há muito tempo deixou de me aparecer em sonhos, mas é uma lembrança recorrente de saudades felizes.

4 comentários:

  1. Alô, Hérlon:
    Que bom ler esta nova crônica. Assim como eu, você não tem vergonha de sentir saudades. A propósito, já está no prelo o meu terceiro romance _Esperança, 50 anos depois.
    O texto valoriza a história de uma mulher que se tornou maior porque se chamava Esperança, nome do Feudo em sua homenagem. Certamente ela valorizaria a frase: “A vida é muito boa, só não se pode é perder a esperança.”
    Parabéns!
    Paulo Saldanha

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  2. Eita, Hérlon, que coisa linda e tocante!
    Este ano não pude ir ao Cariri como de costume. Não acendi a fogueira com o meu padrinho e a falta me roeu muito...saudade roedeira que você tão bem conhece.
    Venho aqui, depois de tanto tempo e me deparo com esta história bela. Fico imaginando que não foi tão fácil escrevê-la, mas certamente necessário.
    Que Deus te abençoe. A você e ao seu avô.
    Abraços.
    Magna

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  3. Obrigado, Magna querida.
    Esta foi uma história adiada. Este ano, longe dos meus, aqui onde o São João não é tradição, fiquei a me lembrar de tantas festas juninas felizes no nossos Cariri.
    Com esse avô, vivi momentos de grandes emoções. Mesmo velho e com aparência frágil, ele inspirava a bravura de um leão. Era um homem extremamente obstinado. Lembrar dele me põe forte. Abraços, querida!

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  4. Parabéns Herlon ,gostei muito da sua história

    Que Deus te abençoe hoje e sempre!!!

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