terça-feira, 8 de abril de 2008

CLAUSURA – UM AMOR REPRIMIDO



O Convento da Santa Piedade localiza-se no alto de uma colina, longe da turba urbana, longe dos privilégios de qualquer conforto. Éramos trinta internas, fora o Conselho Superior, composto de seis madres.
Vivíamos em regime de clausura, pela qual a fé poderia ser alimentada e exercitada. Não sei que emoção me invadiu no dia que adentrei aquela imponente arquitetura, austera, fria, silenciosa; mas cheia de algo que precisava me bastar. Deveria renunciar ao que era humano, para purificar minha alma, para ser mais espírito e estar cada vez mais próxima de Nosso Senhor. Era uma escolha não tão difícil para uma menina órfã de mãe, sem nenhuma irmã, acostumada à rudeza de meu pai e dos meus irmãos.
Ali dentro eu esperava encontrar minha liberdade.
Lá conheci Eva, minha vizinha de clausura, uma alma tão diferente da minha; alguém de quem as asas pareciam cortadas; mas sua vontade de voar iluminava-a toda. Eva era como um dia cheio de sol e, por isso mesmo, não era vista com bons olhos por Madre Paulina - o coração mais seco que eu conheceria em toda a minha vida.
Eva pensava coisas inconcebíveis a alguém que aspirava por usar o hábito; vai ver porque ela praticamente estava ali obrigada pelo seu destino cruel de filha enjeitada. Pouco lhe interessavam os antepassados. Era alguém com visão prospectiva, cheia de uma seiva proibida de brotar dentro das muralhas do Convento da Santa Piedade.

Vez por outra, tínhamos a grata felicidade de sairmos do claustro para tomarmos sol e, com isso, podíamos colher algumas frutas nos arredores dali. Éramos recomendadas a não nos afastarmos muito; mas Eva nunca obedecia à risca as ordens superiores. Ela gostava de admirar um rio que corria ali próximo e me carregava consigo. Não minto que me deixava cativar, principalmente porque nela pulsava uma energia liberta, algo que eu nunca conhecera.
Dizia-me ela da vontade de ser aquele rio de águas revoltas a deslizar sobre as pedras, a desenhá-las a forma desejada, a fluir por entre as matas, dias e noites, para certamente desembocar no mar.
Eu nunca vira o mar, nem mesmo em gravura, mas ela mo desenhara algumas vezes... Descrevia-o como o êxtase da liberdade, como a hipnose abençoada, como a prova mais completa da existência de Deus, pois céu e terra pareciam se tocar... Era como sentir o infinito, sentir o amor do Senhor à vida! Nisso me convenceu a entrar nas águas do rio e, sem pudor algum, despiu-se, despi-me... E aquela foi uma das imagens mais fulminantes que veria durante minha vida. Era um não-sei-quê a prender-me os olhos, a embaraçar-me as idéias, a envergonhar-me, a esquentar-me a superfície da pele que, de tal maneira, esqueci de que não sabia nadar e adentrei nas águas...

Despertei nos seus braços, com um beijo que me tentava reviver, com um toque de lábios que me seduzia... Nós duas, ali, desnudas, numa imagem pagã que me perseguiria até nossa separação, anos mais tarde. Deus sabe o quanto penei nesse meio tempo; Ele sabe o quanto carpi por aquele desejo que me consumia, pela ânsia que me escravizava. No íntimo, em oração, não mensurava pecado, pois era a coisa mais sublime nascida em mim...
Agora estou diante do mar e penso em Eva. Ironicamente a primeira mulher do mundo. A única mulher que amei; a única mulher a ocupar meus pensamentos durante todos esses anos. Ela me inspira liberdade diante deste mar, uma liberdade aprendida nas clausuras de Santa Piedade e de mim mesma.

Hérlon Fernandes Gomes, 08 de Abril de 2008 - Brejo Santo - CE.

P.S.: Em memória de Oscar Wilde.

3 comentários:

  1. quantas pessoas ainda estão presas nas clausuras dos seus pensamentos,da sua alma,dos seus devaneios e preconceitos,sem darem a oportunidade de viverem o mais sublime dos sentimentos que é o amor.o amor que é real em cada ser humano que se encontra na Terra. o amor que está no homem que ama uma mulhr e na mulher que ama um homem.o amor que está no homem que ama outro homem e na mulher que ama outra mulher,porque amor é independente de etnia, classe social e sexo.toda amor vale a pena quando se amor de verdade,puro,sublime.
    salve os que são chamados de loucos porque vivem a sua autenticidade e estão a anos luz na frente dos seus contemporâneos,pelo que pensa,fala,sente e age.
    amei a história!!!!!!!!!!!!!!!!!
    salve o amor delas!!!!!!!!!!!!!!!!

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  2. Realmente é impressionante como muitas vezes nos deparamos com nossa limitação em aceitar o que de fato é tão simples: AMAR. Na própria narração, vê-se como suas agentes relutam, até enfim entrarem numa existência que ultrapassa qualquer entendimento. É, com isso, importante que deixemos as amarras de qualquer forma de preconceito, aceitando-nos e amando-nos, para que assim possamos dividir essa, que é a mais sublime e encantadora das sensações: a plena capacidade de entregar-se ao amor, seja qual for sua forma e representação. Sejamos menos egoístas, e abramos o corações àquilo que nos faz tão dignos de sermos chamados filhos de Deus - a capacidade de se doar!!!

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  3. A delicadeza da ingenuidade quebra a barreira da imposição.
    Renuncias diárias padecem alguns sentimentos.
    Alguns, nem todos...
    A pureza do coração supera a impureza da mente das pessoas.
    Belo.

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