segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O FIO E A FACA (DIÁLOGO QUASE MONÓLOGO)

— Falar de dor nenhuma, rapah! A gente às vezes prefere não enxergar o óbvio, a gente prefere se cegar e criar o espetáculo com as coisas que a gente imagina existir. Eu quis te avisar, mas aí não tem graça, federal. O lance era você descobrir por si mesmo, assim tu fica macaco velho e não vai meter mão em cucuia cheia de abelha. Mas não foi bom? Não se banhe nessa dor que você não deve carregar sozinho nem atire pedra em quem não deve. Não tem culpado, porra! Nesse lance ninguém é culpado de nada, todo mundo é vítima. Nesse jogo, mano, ninguém conhece as cartas, a gente arrisca as jogadas. Muitas vezes o suposto adversário joga a carta amiga e pá: bateu!

— ...

— Espere o tempo e analise os fatos. Muito pequi tem dentro desse baião. Muitas surpresas estão por vir. Eu desconfio que você ainda está equivocado... Normal... Calor da confusão, essa raiva guardada... Cuidado pra não despejar num inocente. Humilhar os outros pra encher o ego da gente não é atitude de quem precisa ter fé, ainda mais no que é mais conveniente de você acreditar. Mais tarde você vai compreender melhor.

 

Hérlon Fernandes Gomes

P.S.: Observando um amigo consolando outro. (Divina comédia humana -  onde nada é eterno!)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

OUTONO DA ALMA, PRIMAVERA DA CARNE

Dentro dela, eclodira um eu que a fazia se desconhecer de si no passado. Já não interessava saber como tudo ocorrera, pois era uma mutação íntima da alma. Foi permanecendo mais no silêncio, no campo das questões que dimensionava como grandiosas. As desilusões do amor foram tornando-a fria, ensimesmada, enrijecida por esse gelo.

                        Foi nesse campo selvagem que sua exuberância feminina mais se fez destacar: como uma planta no auge do viço. Tornou-se mais viva, mais crua; nisso seduzia-se por todos os prazeres proibidos – presenteada como por um feitiço que a fazia saber dosar o limite entre o antídoto e o veneno. Gostava-se no espelho: seu corpo era sua arma. Agraciada pela beleza sutil da latinidade brasileira, riso misterioso, sua presença a definia.  Todos os homens que queria, teria a seus pés – era tudo sempre tão simples... Aprendera a se divertir com o prazer dos rapazes: sabia confundi-los, rendê-los às próprias vontades. Exalava um perfume encantatório, do fundo desse âmago enegrecido pela desilusão. O capricho do tempo foi torná-la indiferente ao que despertava fortemente nos outros.

                        Enchera-se de atitudes secretas, vagando num mundo novo, aberto no seu íntimo; uma dimensão nascida imersa nas culpas que criara. Dentro dali, seu espírito foi ficando seco e sem brilho; por outro lado, a seiva da vida tomava conta de sua roupagem. (As rosas parecem buscar o melhor de sua plástica no frio da noite, na umidade do orvalho, no silêncio da madrugada...)

                        Para todos os homens que enfeitiçava, gostava de tentar ser a mulher perfeita, a ardente amante, a fiel confidente, a independente, a mãe... Aprendera a colecionar as armas mais certas e a conhecer melhor como eles pensam. Enchia-nos de promessas, sabia despertar o melhor calor da paixão, aguçar o mais vadio desejo só para depois voltar e massacrá-los com sua frieza gentil, já que sempre encontrava a maneira exata de torná-los culpados por não conseguirem fazê-la amar.

                        Não, ela não era feliz – nem se lembrava mais como era isso. Talvez, o pior de tudo fosse nem querer se lembrar dessa sensação. Nem isso causava sofrimento – estava imune a qualquer espécie. Foi ficando primitiva, perdendo as ambições de uma vida comum. Movia-se por essa vontade de se vingar do tempo.

                        Como se tornara assim? Um coração desiludido perde sua forma original, de maneira irreversível... Estivera se armando desde então, num processo involuntário que lhe rendia esse veneno negro. A natureza humana moldou-lhe de acordo com as necessidades da selva moderna. De que lhe importavam as mentiras, esperanças, amuos dos homens?... Agora, atacava com o que um dia fora destruída.

                        Tornou-se puramente nessa sedução visceral. Sua parte sagrada estava morta. Ela era uma noite sem sono.

                        No começo, sentiu medo de si mesma. Houve um tempo em que fora frágil, que o nome dele a atormentava de maneira compulsiva. Agora nem mais sabia o eco dessa palavra. Aprendeu a não mais precisar do outro, a não se entregar, a não se decepcionar.

                        Entrou no bar. Frio de madrugada. A música soava agradável, nem sentia os próprios passos, e não tinha medo dos presentes. Sua sensibilidade estava entregue a vícios que a transportavam a outras dimensões... O ambiente era de penumbra, pequenas mesas, quatro pessoas, duas; em cada canto mais escuro, vultos indefinidos... Os garçons equilibravam-se entre bandejas e pedidos.

                        Sentou-se em frente ao balcão e acendeu um cigarro. Naquela noite, queria roubar dos outros qualquer coisa que tornasse sua noite em algo interessante, mas nem sabia quais suas reais expectativas. Pediu um uísque duplo, com gelo, só. Ela era quem naquela noite, sem nenhum conhecido? Gostava do anonimato.

                        No canto, uma cena a fez descer, de um só gole, a bebida. Não estava tão anônima assim... Um casal de namorados divertia-se a quatro mãos postas sobre a mesa, como se um fosse a continuidade do outro. Na superfície da pele deles, fulgurava uma áurea que a incomodava. Dentro de cada um, podia sentir o pulsar de hecatombe a iluminar sua impenetrável clausura. Reencontrar aquele homem não era tão simples.

                        Aquilo a perturbava como a luz que afasta os vampiros. A dor de um nó na garganta esmagava-a de maneira alastrada – uma dor, que por ser costumeira, já nem incomodava. Os gestos dele eram os mesmos de tempos atrás: de delicadeza, os mimos dos primeiros tempos. Sabia os caminhos daquele mapa, desvendado por inteiro... Relembrava um começo feliz, desembocado na quase anulação do amor-próprio. Não, não se sentia derrotada. Não se sentia roubada de nada. Sentia-se frustrada pelo sentimento assassinado. Não queria mais tê-lo em seus braços, não idealizava mais dividir seus dias ao lado dele, não lhe feria a presença da estranha – um arquétipo do que ela própria fora; uma descoberta, quiçá, também se revelasse triste...

                        Ficou. Principalmente para testar o reflexo de si nos olhos dele; para, nesse duelo, medir forças de fracasso. Respirou fundo. Ele passou a notar sua presença, o que o fez perder o controle da direção do olhar e despertar a atenção da namorada para a incômoda presença no balcão. Em cinco minutos, levantaram-se e saíram. À porta, ele ainda arriscou um resto de olhar.

                        Um pouco entorpecida pelo álcool, voltou para casa. Um banho quente a lavaria desse ranço... Ligou o som. O piano de Sérgio Mendes inundava o apartamento, nos acordes de Tristeza de Nós Dois. Enxuta e limpa, saiu despida do banheiro. Foi até o guarda-roupa, perfumou-se e admirou a própria beleza nua. Para quem? Para muitos e para ninguém... Pegou o batom e, num gesto inédito, encheu o reflexo de inúmeros NADA. Talvez para transbordar aquilo que lhe sobrava... Ela era um monte desse nada que ele lhe abrira, um monte de nada que fechava sua alma a qualquer libertação, a qualquer consolo mais perene.

                        Até quando choraria esse pranto seco e sem fim, de lágrima alguma? Perdeu o direito de escolher o que se sente, já não interessava saber o reflexo de suas atitudes no coração do próximo.

Hérlon Fernandes Gomes

Brejo Santo - CE