terça-feira, 29 de março de 2011

PAULO CORDEIRO SALDANHA - A AMAZÔNIA SOB SUA PENA

               “Maktub”. “Está escrito”. Oh, doce mistério esse de estar vivo! Quais oráculos irão desvendar os segredos dessa travessia nossa, desse pulsar de emoções da Existência?
               Nunca em meus planos esteve a imagem de poder morar na Amazônia brasileira e, no entanto, cá estou, na fronteira deste Brasil, cercado de rios e de uma biodiversidade que exalam o cheiro do barro cru há pouco moldado por Deus. É essa sensação de pequenez humana e de expansão espiritual que me inundam todo.
               Em derredor a essa profusão viva, enraízam-se histórias de homens e mulheres que aceitaram o desafio de participar dessa simbiose nem sempre tão harmônica com a selva e que nos legam enredos dignos de deixar invejosa a Sherazade, com assunto para mil e uma noites.
               Hoje, tive a graça de conhecer pessoalmente uma admirável personalidade deste Vale do Guaporé: o escritor guajaramirense Paulo Cordeiro Saldanha.

               Aqui, no estado de Rondônia, ele é um nome que dispensa apresentações, por vários outros atributos que lhe lauream. Mas, neste espaço, gostaria de prestar uma singela homenagem ao homem que dedica suas letras para enaltecer a merecida realeza de sua terra.
               O Jornal “O Mamoré”, periódico de vida perene nesta cidade, é um veículo importante para a integração social e até moral do município. Foi da leitura de “O Mamoré” que partiu minha admiração por Paulo Cordeiro Saldanha, responsável pela coluna “Crônicas Guajaramirenses”. 
               Detentor de um espírito saudosista, o escritor ali imprime reminiscências remotas, contando episódios corriqueiros e enaltecendo personagens que não podem padecer no baú do acomodado esquecimento.
               Maior foi meu deslumbramento ao me deparar, numa livraria, com um romance escrito por esse guaporense!
               O gênero romance é um texto extremamente difícil de se encarar; é um trabalho que, na sua maior parte, exige mais transpiração e paciência que inspiração. Poucas são as cidades a terem o orgulho de possuir um filho romancista. Pois bem, Guajará-Mirim o possui!
               Adquiri, então, O Oráculo da Candelária, última publicação do autor, e embrenhei-me pela leitura desse romance, cheio dessa cor-local amazônica, coroado pelo enigma íntimo a unir Nilton e Melina, personagens dessa trama universal, nascida no espaço europeu e ancorada na exótica Amazônia rondoniense, palco para mistérios cármicos esboçados por uma força sobre-humana, aos auspícios do Criador.

               Entre a troca de e-mails, tive a honra de ser convidado pelo escritor para um “café literário”, às margens do rio Pakáas Novos, que se estendeu por um almoço até a tarde toda, quando o tempo não foi desperdiçado por nenhum hiato de silêncio, haja vista a constante e agradável conversa que nos envolveu.

               O Sr. Paulo Saldanha, além de extremamente bem-humorado, é uma enciclopédia-viva desta porção de Brasil – não obstante seus conhecimentos universais. É um amante fervoroso de sua história, de sua família; é um devotado discípulo da literatura, pela qual se utiliza como instrumento para partilhar com todos de suas vivências e impressões de sua terra.
               Despido da vaidade que macula de pedantismo alguns intelectuais, o Sr. Paulo, este admirável “contador de histórias”, carrega a impressão verídica de uma alma generosa, que busca aquilatar a cultura municipal aparentemente (?) negligenciada pelos poderes públicos constituídos.
               Voltei para casa mais cheio de amor por esta terra que me acolheu tão bem e que a cada dia me põe no caminho a oportunidade de conhecer grandiosas pessoas. De lambujem, fui presenteado com o primeiro romance do autor, O Alferes e o Coronel, que traz como personagem principal  um conterrâneo cearense, de Canindé,  conhecido coronel da história de todo o Norte do País.

               Deus continue a lhe render essa abençoada inspiração, Sr. Paulo, e nos conceda o presente de poder desfrutar de suas histórias por muito tempo, ao sabor de sua prosa de deliciosa leitura. A cultura agradece!

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim/RO, 28 de março de 2011.

sábado, 26 de março de 2011

O outro lado do espelho


Era um ritual secreto que se iniciara na infância, quando contava dez, onze, doze anos de idade, talvez. Trancava-se no banheiro, subia e sentava-se na pia para mirar-se no espelho. Não sabia bem o motivo de fazê-lo escondida dos outros; certamente porque não teria uma desculpa para quem a surpreendesse diante daquele ritual inusitado.

Quando se observava, não procurava enxergar simplesmente o superficial. Era uma atitude para se reconhecer. Afirmava em som audível para si: “Eu sou eu. Meu nome é Alice.” Invadia-se por uma sensação indescritível de existir, de participar da vida. As respostas vinham como ondas de arrepios elétricos pelo seu corpo. “E por que ela nascera? E por que ali, filha daquelas pessoas, irmã dos seus irmãos?”, “Por que sua vida era assim?” Na maioria das vezes era retirada do transe por alguém que precisava usar o único banheiro da casa.

Quando estava sozinha, era bem melhor; podia continuar seu ritual no espelho do quarto dos pais. Era enorme, com grossa e antiquada moldura em madeira. Ali, além de se questionar, desafiava o próprio reflexo, não muito convencida de que a imagem refletida correspondia à realidade. Fugia da imagem central, depois voltava de vez para certificar-se de que se tudo acontecia tal qual ela gesticulava.

O tempo foi passando, e no fundo do espelho, sabia que podia contar com uma amiga secreta, nem sempre com a razão absoluta para todas as coisas, mas bem mais cheia de vigor e autoconfiança que a Alice do lado de fora.

Quando a tristeza era desoladora, e desembocava num rio de lágrimas, corria para frente do espelho e passava a escutar os conselhos que a outra lhe ditava. Geralmente aquela lhe ria da fraqueza, xingava o seu melodrama, seu medo de encarar as pessoas e as emoções que o mundo exigia que ela desfrutasse. De outras vezes, obrigava-a a esbofetear o rosto, como sinal de punição para sua fraqueza e covardia. Resolvia? Resolvia, sim. Só conseguia adormecer quando prontamente disciplinada pelo outro eu que habitava o vazio-cheio do espelho.

Quando se apaixonou por Beto, passou a viver um drama inconciliável com a Alice “de dentro”. Esta acusava-a de submissão cega, de falta de amor-próprio, de imbecilidade; tachava-a de ridícula até que, humilhada, resolveu esquecer o ritual. Era simples: bastava não se questionar diante do espelho, senão a outra, a intrometida, procurava instituir um império de razões e desaforos.

Eis que veio o fim do namoro. Beto estava cansado, não queria mais se sentir preso a ela, também era melhor ela não querer saber os porquês, acabaria se magoando ainda mais...

 Voltou para casa sem alma. No quarto, acendeu a luz. Diante do espelho, teve dez segundos para sentir pena de si mesma, até que a outra reapareceu, também com os contornos sérios, como se jogasse no âmago os argumentos que comprovassem a falibilidade da Alice “de fora”: “Você precisa morrer!” 
 
Ajoelhada, convencida de que a outra tinha razão, chorava como uma condenada a expiar uma pena que não merecia. Chegou mais perto do espelho e ali, tocando a superfície gelada do vidro, sentiu-se transportada para o interior daquele espaço, onde tudo era inquietantemente surdo. Sentiu uma inédita aflição, enquanto a outra, antes “de dentro”,  ameaçava-a com um sorriso de vingança. 

Agora livre, dirigiu-se até a janela do "seu" apartamento. Que sede de liberdade! Respirou fundo. Constatou que do quinto andar até o solo era uma altura considerável. Retornou ao espelho. Retirou-o com pressa da parede e volveu ao vento frio da madrugada. Como percebesse não haver transeuntes àquela hora da noite, lançou-o com vigor até o centro do asfalto. Lá embaixo, espatifada em cacos, jazia uma Alice que nem merecia ser lembrança.

Hérlon Fernandes Gomes
21 de março de 2011
Guajará-Mirim-RO

sábado, 19 de março de 2011

"O CABARÉ DE VIDRO" de Sérgio Darwich

       
         Quando cheguei ao Norte do país, há quase um ano, mais especificamente à pacata cidade de Guajará-Mirim – Rondônia, imbuí-me de interar-me acerca da cultura desta terra, notadamente sobre as áreas que me apetecem.
         Tive a sorte de poder comungar, no meu ambiente de trabalho, de mentes brilhantes, das mais cultas e agradáveis. Eis que, na faina cotidiana, nos intervalos entre uma audiência e outra, discutíamos sobre música, literatura, cinema, política...  lanço, ali, na prosa, a minha curiosidade sobre conhecer a obra O Cabaré de Vidro, escrito pelo falecido pai de um dos interlocutores. Um pouco surpreso com minha investida naquele momento, dias depois, o referenciado, Bruno Sérgio de Menezes Darwich, surpreende-me com um exemplar dedicado daquela obra, com os seguintes dizeres do imortal Cervantes, que bem poderia ter epigrafado o livro no original: “Se o poeta fosse casto em seus costumes, seus versos também o seriam. A pena é a língua da alma: como forem os conceitos que nela se conceberem, assim serão seus escritos”. (Dom Quixote, Parte Segunda, Cap. XVI)
         Começo por dizer que li o livro de uma sentada e passei o dia inteiro tomado pelas sensações que ele me despertou.
         Sérgio Darwich é um nome estranho na fama das letras nacionais, como tantos talentosos poetas o são. Não obstante sua impopularidade, os poemas deste autor tiveram a força elevada de me marcarem como o fizeram Drummond, Cecília Meirelles, Neruda, Florbela Espanca, Murilo Mendes e tantos outros imortais conhecidos de todos nós.
         Se a valorização da cultura anda capenga em todo o País, aqui em Rondônia, esta jovem unidade da federação, não é diferente: agora que ocorre um processo inicial de despertar da arte aqui produzida. Depois de ler a obra, senti-me instado a prestar uma homenagem ao poeta e dividir com os leitores do meu blog da pungente mágica poética ali presente.
         Publicado no ano 2000, O Cabaré de Vidro é uma coletânea de poemas escritos entre épocas variadas da vida de Sérgio Leonardo Darwich. Nascido em 1947, em Belém-PA, o poeta, de ascendência libanesa, radicou-se no Estado de Rondônia, onde desenvolveu fecunda carreira de advogado. Falecido em 2005, além de ter escrito a coletânea “Poemas Vagabundos”, em parceria com Sérgio Mendonça e Ivana Aguiar, o escritor triunfa o legado maduro de sua escrita no singular O Cabaré de Vidro.
         Como se infere pelo título, o autor explora a zona mais recôndita do íntimo que, no entanto, expõe sem nenhum pudor, instigando mistérios, já que sua unidade de medida é o sem-limite do sentir, é o despudor de estar vivo e constatar que não guardamos segredos de nós mesmos.


“A VIDA,
ESSA IDEIA FIXA,
ESSE TUDO OU NADA,
ESSE AGOZ DA MORTE
APRISIONADA”
(pág. 16)

“Minha boca
Suga exasperadamente
Os seios da solidão.
Minhas mãos,
Lúbricas,
Tateiam o sexo da noite.
- Os gonzos da angústia
Rangem no silêncio.
O pássaro do desespero
Pousa muitas vezes,
Na urgência do teto
Que me abriga a cada instante.”
(pág. 28)


         O livro é um palco onde se perfilam as emoções mais vivas, regadas a sangue, suor, sêmen, saliva e lágrima. O espectador perceberá que existe uma porção de ser-humano guardada intacta no decorrer das gerações, porque os sentimentos da carne e da alma conservam uma alquimia secreta que nos será peculiar ad eternum.


“Sou um homem sem data,
Sou todo ausência.
Tudo em mim
É notícia antiga,
Manifesto inacabado,
Ato de ser até quando.
Não tenho propostas,
Minha vida ruma sem rumo.
Sou um homem sem data.
- Na estrada dos dias
O tempo corre mais veloz.
Sou um navio quebrado no estaleiro da dúvida.”
(pág. 24)

“Fatigado de mim,
Certas horas,
Me fujo,
Me perco,
Me escondo
Num lugar qualquer
Da minha ausência.
Em seguida
Me desespero.
Me procuro pelos
Atalhos da memória,
Até me achar.
Então me mato
E me dispo
E durmo sossegado.”
(pág. 44)

“Cruzávamos o portal da noite
Ao encontro do amanhecer
Montando cavalos de sono.
Chegávamos rápidos
E desmontávamos
Com nossos gestos breves.
Despíamo-nos lentamente
Sobre a relva da manhã.
Em seguida,
Tocávamos e beijávamos
Nossos corpos nus,
Como convém aos amantes,
Despidos de passados e pudores.
Tudo se passava
Num ritual discreto e descontraído.
Gozávamos profundamente,
Tanto tempo,
Tantas vezes,
Até que adormecíamos sobre a relva.
O sol anunciava sua partida.
Então,
Despertos,
Montávamos cavalos de sono,
Cruzávamos o portal da noite
E voltávamos outras vezes
Para acordar o dia.
(pág. 50)


         As metáforas surrealistas de Darwich tocam compassadamente a essência de uma sinfonia concertada com a alma.


“A mulher de passos tristes
E gestos indefinidos,
Segue o rumo de seus olhos claros.

Na curva de seus passos
Há uma porta de inconstância
E sonho.
- Moderna arquitetura do passado.

No rumo de seus caminhos,
O tempo é uma viúva disfarçada
De prudências e escombros.

No mundo luminoso do seu ser,
Repousam antigas mãos de pássaros
E atitudes incompletas.”
(pág. 54)

“Sol me fustiga
O rosto
Pela fresta da manhã.
Enérgico,
Me desperta,
Me traz a memória na bandeja.
Sonolento,
Fastidioso,
Me levanto,
Me comprovo,
Me providencio.
De pronto,
Mais uma vez estou pronto:
Distinto,
Discreto,
Preparado.
Enfim,
Rigorosamente trajado
Com a farsa que eu sou,
Apto a sair,
Por aí,
Impunemente.”
(pág. 42)

         É, sem dúvida, um livro corajoso, em que o poeta se enfrenta nu, diante do espelho e questiona a emoção indefinível de viver; expõe a irreprimível necessidade de quedar-se aos desejos levianos do coração; entrega-se à preguiça morna da luxúria necessária.


“Onde anda o amor recomeçado
Na dádiva do sonho a cada vez?
Onde anda o amor inacabado
Na consistência da morte toda vez?
Minhas mãos cheias de pânico
Soluçam por carícias provisórias.
Bendita seja a paixão desesperada,
Limite preciso entre a vida e a morte.
Oh amor profano!
Um manto de inocência
Se estenderá sobre teu corpo.
A mim me resta um desprezo espontâneo.
Meus lábios incendeiam em beijos solitários.
Meus versos dão notícia do teu fim.”
(pág. 58)


“Uma nuvem de silêncio espessa
Envolve delicadamente a noite.


No Cabaré de Vidro,
Dançarinas de cristal se despem
Em ritmo musical lancinante.


Refletidas nos espelhos
Imagens em cores imaginadas
Traduzem profecias passageiras.


Discretamente,
Um jovem casal ardente
Roga por carícias esquecidas.


Uma prostituta sensual
Ergue um brinde para todos
Em pleno salão central.


Entre os presentes,
Futuros vestígios,
Derradeiros presságios.


No mar em frente,
Marinheiros de fumaça
Se dispersam em navios perdidos.


No rio atrás,
Uma profunda cicatriz
No rosto das águas.”
(pág. 66)


         Entre um trago de uísque e um charuto, ele debate as mazelas sociais, põe o dedo na ferida da ignomínia humana para, ao final, fatigado de si, debruçar-se sobre o rio, onde seu reflexo é um álbum de emoções escolhidas que ensinam o poeta a enganar a morte.


“Cumpra-se a lei
A mando do rei.

Ele falou,
Não devia falar:
É crime de pensamento,
Não há como negar.

A lei permite o pensamento,
Que ela não deixa expressar,
Já era quase possível,
Pensar sem poder falar.

Ele falou...
Cumpra-se a lei,
Chicote do rei.”
(pág. 10)

“Desponta
Essa manhã em cinzas,
Apontando ruínas recortadas.
Descuidadas,
Deusas de cristal e vidro,
Discutem em silêncio
Seus mistérios mais profundos.
O rio,
Contudo,
Indica as mesmas coisas:
Água, morte, substância.
A ribanceira tece seus segredos
Em fibras de amor desperdiçado.
É música volátil,
É pássaro sem pouso,
O rio.
Dentro do barco,
O tédio vaga seus acordes.
O sonho é brisa passageira.
O rio segue o trajeto de seu talhe,
O rio não tem malícia de seus males.
Tudo se confunde.
- Sombras de coisas e acontecimentos.
E o canto existe, mas repousa,
Numa canção que em barro se dispersa.”
(pág. 68)

“NINGUÉM PERCEBE
QUE MORTO
VOU DESLIZANDO
PARA NASCER
DAQUI A POUCO
NA OUTRA MARGEM DO RIO”
(pág. 69)

         Sem dúvida, a leitura de O Cabaré de Vidro não pode se resumir ao seleto grupo que teve acesso a primeira e única edição da obra. Esta antologia crítica, além de servir de homenagem ao poeta Sérgio Leonardo Darwich, e de partilhar com outros leitores de alguns dos poemas ali escritos, é um protesto para que se valorizem mais a cultura e a literatura no estado de Rondônia.
         Oxalá o progresso cultural deste lugar acompanhe o desenfreado crescimento industrial!


Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim – Rondônia, 13 de março de 2011.


P.S.: Dedico esta postagem, em especial, ao filho do poeta homenageado, Bruno Sérgio de Menezes Darwich, uma das mentes mais cultas que já conheci e um ser humano admirável, notadamente por sua competência e humildade.